O som da máquina de escrever tomava a casa. Depois, tomou o
mundo. Do escritório, vinha a intensidade das teclas. Não era à toa. Uma
produção que valia por dois. O barulho vinha do homem real, o escritor Sérgio Porto,
e da criação, Stanislaw Ponte Preta, o heterônimo sarcástico que ia além do que
o rodeava.
O jornalista, que também foi radialista, teatrólogo e
compositor, nasceu em 11 de janeiro de 1923 e viveu apenas 45 anos (vítima de
um infarto). A produção diversa inclui 14 livros (quatro assinados por Porto e
10 como Ponte Preta).
Mas o legado dele atravessa o século. Quem o conheceu de
perto e também estudou a sua obra entende que a versatilidade é uma marca
fundamental da alma do escritor e artista. Até a década de 1960, tratou do
cotidiano, particularmente, do povo do Rio de Janeiro. Depois de 1964, passou a
abraçar uma missão com firmeza: atacar a ditadura militar e se apresentar como
defensor da democracia.
“Na época da ditadura militar, ele foi um dos principais
combatentes e críticos à opressão. Ele foi um grande defensor da democracia”,
afirma a pesquisadora Claudia Mesquita, autora do livro De
Copacabana à Boca do Mato: O Rio de Janeiro de Sérgio Porto e Stanislaw Ponte
Preta. Ela explica que os traços dessa escrita sarcástica
estão nos três volumes dos livros Febeapá - O Festival de Besteiras
que Assola o País. Claudia Mesquita é uma das principais pesquisadoras da obra
de Sérgio Porto.
Atualidade
A pesquisadora considera a obra dele extremamente atual e que, inclusive, ajuda
a ler o Brasil do Século 21 e os ataques à democracia, como o que ocorreram no
último domingo (8) por uma ótica histórica. “Ele faz muita falta. Porto usava o
humor como uma ferramenta muito importante na defesa das liberdades e do Estado
de Direito”, disse Claudia Mesquita, em entrevista à Agência Brasil.
A pesquisadora entende que Porto pensou o Brasil de uma
maneira generosa e progressista. “O humor ajuda a despir o rei e mostrar os
absurdos. Antes do golpe de 1964, Sérgio Porto era muito ligado aos temas
do cotidiano, à cidade do Rio de Janeiro e à música popular. Depois
do golpe, ele foca nas questões políticas. O golpe foi um divisor de águas na
obra do Sérgio Porto”. Ela explica que o escritor ironizou a fobia
anticomunista e passou a denunciar através do humor.
Em família
A filha mais velha, a jornalista Gisela Porto, hoje com 70
anos, recorda que o pai, mesmo determinado em denunciar crimes praticados por
agentes do governo, tinha receio de ser preso. “Ele tinha muito medo (de uma
prisão) porque ele era cardíaco”. A família também ficava preocupada nas
ocasiões que ele demorava a chegar. Isso aumenta o orgulho da história dele.
“Durante a ditadura, ele acabou sendo um dos principais gritos pela liberdade”,
avalia.
Foi com o tempo que as filhas entenderam o tamanho da obra de Porto. “Ele
sempre foi muito amoroso e tínhamos muito contato com ele. Quase todos os dias,
ele nos levava à praia”, diz Gisela. Outra filha, a historiadora Ângela Porto,
de 69 anos, explica que o pai morreu quando ela tinha apenas 15 anos de
idade.
“Ele sempre trabalhou muito. Mas era muito próximo a nós
porque ele trabalhava a maior parte do tempo em casa. Durante muito tempo, ele
foi funcionário do Banco do Brasil e o resto do dia e ele ficava em casa
escrevendo”, afirma a historiadora.
Elas recordam que, quando ele acabava de escrever, colocava
as filhas no carro para entregar os textos ou atuar em rádio e na TV. “Eu tomei
ciência do tamanho da obra dele depois de adulta. Foi um homem que produziu
muito”. Ângela foi curadora da obra dele e explica que a obra precisa ser
preservada e divulgada. Obras originais estão no acervo da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.
Inspirações
A professora Cláudia Mesquita contextualiza que, antes da ditadura, o olhar de Sérgio Porto era principalmente para a diversidade cultural e a desigualdade social no Rio de Janeiro. “Ele foi um rapaz de Copacabana, amigo do (jogador) Heleno de Freitas. Ele viveu muito o bairro. Ele foi um cronista da noite. Com o (escritor e músico) Antônio Maria (leia mais aqui), eles criaram esse gênero jornalístico de ‘cronista da noite’. Ele nasceu e morreu na mesma rua”.
Porto chamava atenção para a invasão dos prédios no bairro,
alterando as características do lugar em que viveu. Aliás, esse é um tema de
um livro que ele escreve como Sérgio Porto, A Casa Demolida. Esse é um livro do
coração também das filhas também. Tanto que elas indicam que podem despertar
novos leitores para conhecer o genial escritor.
A metamorfose
A criação do heterônimo Stanislaw Ponte Preta
aconteceu no jornal Diário Carioca, em 1953. A criação foi ficando mais
famosa do que o criador. “Quando ele foi trabalhar no jornal, foi convidado
para ser colunista social. Ele aceitou com a condição de que ele usasse um
heterônimo e que pudesse falar de tudo.
“Para chegar ao novo nome, se inspirou no personagem Serafim
Ponte Grande, criação de Oswald de Andrade. Ele foi um sucesso enorme“. Tanto
que criou os personagens da família Ponte Preta, e que vão inspirar obras dele.
Dessa viagem, criou obras como Tia Zumira e eu, Primo Altamirando e
elas e O garoto linha dura.
A professora avalia que o interesse dele em falar dos
subúrbios do Rio, mesmo sendo de Copacabana, tem o objetivo de tratar de uma
cidade partida, denunciada por diferentes autores, como Lima Barreto (leia mais
aqui).
“O que mais me impressiona na obra dele é a versatilidade que ele tinha, a
capacidade ímpar de produzir. Além de cronista, escritor, jornalista, ele foi
radialista, produtor musical, ele trabalhou nos primórdios da televisão
brasileira. Ele era um trabalhador árduo”, diz a professora. Suor, sarcasmo,
bom humor e denúncia. Mistura de arte e jornalismo. Conforme as entrevistadas
avaliam, o barulho da máquina de escrever vai continuar ecoando além do
centenário do artista e dos seus dois nomes.
Fonte: Agência Brasil
Fonte: Acervo da
Família