
Esta quinta-feira (30), véspera do aniversário de 59 anos do
golpe militar de 1964, marca a retomada das sessões públicas da Comissão de
Anistia, com o julgamento de processos que ficaram
pendentes ou tiveram seus pedidos negados nos últimos anos,
especialmente durante o governo de Jair Bolsonaro. A pauta inclui os requerimentos
de Romario Cezar Schettino, Claudia de Arruda Campos, José Pedro da Silva e
Ivan Valente (saiba mais a seguir). A reunião será transmitida pelo canal no
YouTube do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e integra a
agenda de eventos da Semana do Nunca Mais, que inclui uma série de atividades
pela recuperação da memória, verdade e justiça sobre períodos ditatoriais do
Brasil.
De acordo com presidente da Comissão de Anistia, Eneá de
Stutz e Almeida, o colegiado pretende rever, nos próximos anos, milhares de
processos que foram julgados e negados indevidamente pela gestão anterior.
“Temos uma estimativa de que pode ser de 4 mil até 8 a 9 mil processos”,
revelou em entrevista à Agência Brasil. Citando especificamente os últimos
quatro anos (2019 a 2022), Almeida conta que houve uma estratégia deliberada e
sistemática para negar requerimentos em massa e tentar encerrar os trabalhos da
comissão.
“Nesse período, a Comissão de Anistia que existiu era
negacionista. Ela negava o golpe, negava a ditadura, negava a perseguição
política e, claro, o resultado tinha que ser negar a anistia política”, diz.
“Todos [os integrantes do colegiado] eram contra o deferimento da anistia e
todos diziam que não houve golpe de Estado em 1964”, acrescenta.
Revitimização
Para negar o pedido de reparação integral, que inclui o
pagamento de indenização de até R$ 100 mil e um pedido formal de desculpas do
Estado brasileiro, a Comissão de Anistia do governo Bolsonaro buscava
desqualificar o relato das vítimas, segundo a atual presidente do colegiado.
“A pessoa entrou com requerimento para ter um acolhimento do
Estado e ter a assunção, pelo Estado, do erro de ter sido perseguido, e
recebeu, na cara, um 'bem feito, você mereceu ter sido perseguido'. Se a pessoa
foi presa ou torturada, a culpa era dela. Se ela tinha perdido emprego [por
perseguição política], a mesma coisa. Nada tinha justificativa para conceder a
anistia para quem negava o golpe e a perseguição política”, conta Eneá de Stutz
e Almeida.
É o caso, por exemplo, da ex-militante do grupo Ação Popular
Claudia de Arruda Campos, que terá seu caso reavaliado hoje após o
indeferimento de seu pedido, em 2019. Durante a ditadura, ela foi presa no
Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e foi constantemente monitorada
pelo regime. A concessão de seu pedido de anistia foi negada pelo general Luiz
Eduardo Rocha Paiva, que integrava a comissão à época.
O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) também teve seu
pedido de anistia negado durante o governo passado, mesmo tendo sido preso duas
vezes e torturado por agentes do regime militar. Valente, que era professor da
rede pública de ensino de São Paulo, perdeu o emprego e teve que viver na
clandestinidade. Mesmo tendo concluído o curso superior em engenharia, ele foi
impedido pelo regime de obter o diploma.
O caso do ex-sindicalista José Pedro da Silva, atualmente o
mais idoso entre os que terão seus processos revistos, com 80 anos, envolve uma
história de perseguição por sua atuação no Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco
(SP), na década de 1970. Ele chegou a ser preso e foi demitido. Em 2018, teve
sua anistia concedida pela comissão, mas seu requerimento foi negado por Gilson
Libório, então ministro da Justiça substituto do governo de Michel Temer. A
prática de revisão de pedidos aprovados pela Comissão de Anistia foi
posteriormente adotada durante a gestão de Damares Alves à frente do Ministério
dos Direitos Humanos.
Já o jornalista Romário Schettino terá o caso reavaliado
para atualização monetária de sua indenização. Ele teve seu pedido aprovado
pela Comissão de Anistia, mas os últimos governos nunca publicaram a portaria
oficializando a concessão.
“Está no nosso novo regimento interno da Comissão de Anistia
que, a partir de agora, cada pessoa que recebeu uma atuação ilegal da comissão,
como essas, pode entrar com recurso. Vai ser reanalisado pelo plenário da
Comissão de Anistia”, assegura Eneá. O desafio, no entanto, é vencer as
barreiras materiais, já que o trabalho dos conselheiros é voluntário e
não-remunerado. Além disso, a comissão está com sérias limitações orçamentárias
para realizar suas atividades este ano, revela a presidente.
Anistia coletiva
Outra novidade do regimento, publicado na semana passada, é
a possibilidade de apresentação requerimentos coletivos de anistia. No
requerimento coletivo, não é possível ter reparação econômica. “Isso é um mundo
de possibilidades que se abrem para populações indígenas e quilombolas,
movimentos sociais, sindicatos, coletivos de filhos e netos, grupos LGBTQIA+ e
outros que foram perseguidos durante o regime ditatorial no país”, explica.
No lugar de uma reparação econômica, esses grupos podem
contar não apenas com um pedido de desculpas formal do Estado brasileiro, mas
também pedido para retificação de documentos e acesso a tratamento de saúde
pelo SUS, por exemplo, ou mesmo recomendação para demarcação de territórios,
como no caso de indígenas e quilombolas, entre outras medidas. Nesses casos, a
presidente esclarece que a comissão não poderá determinar providências, mas
recomendar para outros órgãos públicos.
Perfil
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília (UnB) desde 2009, Eneá de Stutz e Almeida tem uma trajetória de
estudos na temática de justiça de transição. “Eu já estudava esse tema de
anistia, coisas vinculadas à ditadura, porque minha área de estudo é história
de direito”, conta.
Antes de presidir a Comissão de Anistia, ela chegou a ser
conselheira do colegiado por quase 10 anos até pedir seu desligamento, no fim
de 2018, quando o órgão já começava a viver seu período de descaracterização.
Até então, mais de 75 mil pedidos de anistia haviam sido apresentados ao
colegiado, criado em 2002. Desses, segundo Eneá, cerca de 65% dos casos
chegaram a ser deferidos.
Para a professora, a Comissão de Anistia cumpre um papel
crucial na preservação da memória, promoção da verdade e garantia de reparação,
aspectos essenciais da chamada justiça de transição, que assegura uma efetiva
consolidação entre os períodos autoritários e a democracia. “Não completar a
transição é algo muito perigoso”, adverte. “A irrupção da violência e a
tentativa de golpe de Estado no dia 8 de janeiro deste ano é uma prova disso.
Quando a gente tenta impor esse esquecimento da história na forma de recalque,
funciona como tentar varrer a sujeira para baixo do tapete, mas esse recalque
sempre volta na forma de muita violência”.
Foto: Lula Marques/Agência
Brasil