
Aiuê de São Benedito. Festa da Capina. Marambiré. Suça…Graças ao interesse e ao empenho de grupos populares, um amplo conjunto de manifestações culturais tradicionais ainda pode ser apreciado por todo o Brasil. Identificadas exatamente por suas “práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida”, as comunidades remanescentes de antigos quilombos tornaram-se uma das últimas trincheiras não só a preservar, mas também a vivenciar muitas destas tradições transmitidas de geração em geração.
Segundo
a secretária executiva da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos
(Conaq), Selma dos Santos Dealdina, os folguedos, os ciclos festivos, as danças
típicas e outras formas de expressão cultural cumprem um importante papel de
coesão social, sendo um componente fundamental para o processo de identificação
e reconhecimento das comunidades quilombolas. Além disso, respeitadas suas
características, podem tornar-se uma fonte de renda a mais para as comunidades.
Tanto que a Conaq pretende pedir apoio federal para mapear os eventos que
ocorrem nos quilombos de todo o país a fim de divulgá-los e, assim, atrair
quem, por exemplo, se dispuser a acompanhar parte do Ciclo do Marabaixo, em
Macapá; dançar ao som dos tambores durante uma das muitas festas dedicadas a
Santa Bárbara ou a provar dos pratos típicos da comunidade quilombola Kalunga,
em Cavalcante (GO), durante a Romaria de Nossa Senhora da Abadia.
“A cultura popular é
feita na base da militância”, disse Selma à Agência Brasil na última
terça-feira (23), quando participou de cerimônia alusiva
ao Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento,
promovida pelo Ministério da Cultura e pela Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Oriunda de uma comunidade
quilombola capixaba, Selma é organizadora do livro Mulheres Quilombolas,
Territórios de Resistências Negras Femininas (Editora Jandaíra).
Agência Brasil: Durante
a cerimônia, você mencionou que é muito difícil organizar eventos culturais
“para o povo preto” em geral, especialmente para as comunidades quilombolas.
Quais são estas dificuldades?
Selma Dealdina: São
muitas. A gente diz que a cultura popular, tradicional, é feita na base da
teimosia. Na maioria dos casos, falta apoio adequado por parte dos espaços
públicos, das prefeituras, dos governos estaduais. Até há editais [de apoio
financeiro], mas a questão é como chegar para grupos tradicionais de
comunidades que muitas vezes não têm sequer energia elétrica, que dirá acesso à
internet, e pedir para os integrantes desses grupos se inscreverem nos editais
e concorrerem à obtenção de verbas públicas. É necessário levar em conta se as
pessoas que deveriam ser beneficiadas por determinada ação entendem [e têm
condições de cumprir] os trâmites burocráticos, a exigência de um monte de
documentos.
Agência Brasil: Neste
sentido que você diz que eventos de cultura popular são feitos na base da
teimosia?
Selma Dealdina: Sim. No sentido
de que, nesses casos, a cultura é feita na base da militância, por pessoas que,
muitas vezes, gastam do pouco que ganham com suas atividades profissionais para
comprar as roupas, paramentos e utensílios necessários. Insisto: há editais,
mas quem não tem acesso à informação segue na invisibilidade. Isso é uma
realidade não só nas comunidades quilombolas, mas basta verificarmos quantos
grupos, quantas manifestações de comunidades quilombolas, receberam recursos
públicos, seja dos governos municipais, estaduais ou federal. É um número
insignificante. Justamente porque essas comunidades têm dificuldade de obter as
informações necessárias. E mesmo assim as pessoas seguem fazendo cultura, à sua
maneira.
Agência Brasil: O
que a Conaq e as comunidades quilombolas têm proposto aos órgãos públicos para
corrigir essas desigualdades?
Selma Dealdina: Além
de denunciar a histórica falta de apoio e a dificuldade de as pessoas acessarem
as formas de incentivo à produção cultural, a Conaq agora tem uma proposta de
mapear as diversas manifestações existentes. A ideia é criar um calendário das
festas que acontecem nas comunidades quilombolas. Praticamente todos os dias há
uma festa ocorrendo em algum lugar do país. Nossa proposta é reunir as
informações disponíveis em uma publicação. Para que as pessoas possam saber,
por exemplo, que todo mês de maio acontece, na comunidade quilombola de Monte
Alegre, em Cachoeiro de Itapemirim [ES], a festa Raiar da Liberdade, que este
ano completou 135 anos de existência. Possam saber da festa do Quilombo
Mesquita, de Cidade Ocidental [GO]; do bloco afroquilombola existente no
Quilombo Acre, de Cururupu [MA]. Cultura nós temos. O que precisamos é que as
ferramentas [de estímulo] cheguem à ponta e, com isso, os grupos populares,
tradicionais, consigam se manter, preservando o saber e o fazer popular.
Agência Brasil: Este
levantamento já está sendo feito?
Selma Dealdina: Pretendemos
apresentar o projeto aos representantes do Ministério da Cultura, durante o
encontro nacional que realizaremos de 14 a 18 de junho. Deixando claro que este
levantamento precisa ser feito por gente das próprias comunidades que, além de
tudo, recebam a capacitação necessária. A ideia não é contratar alguns
pensadores iluminados de fora da comunidade e mandá-los para os quilombos com
seus modos de olhar as manifestações culturais de cada grupo. O olhar de quem
vivencia o dia a dia das comunidades quilombolas pode até ser apaixonado, mas é
mais apurado para [captar] os vários significados e importância dos fatos.
Agência Brasil: Além
da valorização e divulgação da produção cultural quilombola, uma iniciativa
como esta tem potencial de fomentar o turismo e a geração de renda local?
Selma Dealdina: Muito.
Principalmente quando se trata de festas maiores, como a que acontece no
Quilombo do Campinho da Independência, em Paraty [RJ]. Eventos assim geram
ganhos para além da comunidade quilombola. Porque essas festas cumprem um
ritual comunitário, motivando quem deixou a comunidade a visitá-la, mas também
atraem outras pessoas que prestigiam os eventos. Então, há quem se hospede
na cidade, quem coma nos restaurantes, use aplicativos ou táxis. Na própria
comunidade quilombola há os ambulantes; há a venda de produtos e do artesanato
feito por moradores. E estes, ao receberem, vão fazer suas compras no
mercadinho, na padaria, movimentando a economia local. Nestas comunidades, R$
10 mil em circulação já representa muito, principalmente porque é uma quantia
que fica com quem efetivamente faz a festa. O mais importante, no entanto, é
que estas festas e manifestações culturais tradicionais são uma oportunidade
para as pessoas conhecerem a História do Brasil.
Agência Brasil: Em
que sentido?
Selma Dealdina: Nós,
brasileiros, não conhecemos a história dos quilombos e a exata importância dos
negros e das negras para a construção deste país. O que estudamos nas escolas
até há pouco tempo era uma mentira que só nos últimos tempos começamos a
reescrever. A invisibilidade e a negação da participação negra na história faz
com que as pessoas desconheçam a real história do país. E a situação dos
quilombos é um exemplo disso. Boa parte das pessoas conhece um pouco sobre
Zumbi dos Palmares, se tanto. E os que vieram resistindo após isso? E [a líder
quilombola do século 18] Teresa de Benguela? [A abolicionista do século
19] Adelina, a Charuteira? Todas as pessoas importantes que não conhecemos?
Agência Brasil: Como
a preservação dos costumes e das festas tradicionais pelas comunidades
quilombolas dialoga com as ações de regularização dos territórios remanescentes
de quilombos?
Selma Dealdina: Todas essas
manifestações são levadas em conta durante a produção dos relatórios
antropológicos. A história da comunidade é contada a partir das suas festas, do
cemitério e da igreja locais, das pessoas mais velhas… Ela é contada sempre a
partir de um fato, de um momento histórico, de uma luta que a comunidade
travou. Ou seja, não é possível contar a história das comunidades quilombolas
desassociadas de suas manifestações culturais, sem levar em conta os elementos
históricos de organização social. Seja uma ladainha, uma reza, um forró ou um
jogo de futebol – inclusive, não conheço nenhuma comunidade quilombola que não
tenha ao menos um campo de futebol.
Agência Brasil: Ao
contribuir para valorizar a cultura de determinado grupo e, em alguns casos,
proporcionar renda, eventos tradicionais podem estimular as pessoas,
principalmente os jovens, a permanecerem em suas comunidades?
Selma Dealdina: Ajudam,
mas esta questão é bastante complexa. Não há, hoje, como manter um jovem no
quilombo sem lhe oferecer determinados bens e serviços. Tem que preservar
certas formas de manifestação da cultura local, mas também tem que ter internet
no quilombo. Tem que ter uma escola de qualidade – e é importante dizer que há
quilombos onde existem campus universitários. É necessário levar em
conta que, assim como há quem queira ir para as cidades, há também os jovens
que querem ficar [na comunidade], trabalhar na roça, viver do campo, mas sem
abrir mão de ter um celular, um bom sinal de internet. E há aí uma outra
questão, que é o direito de quem permanece em sua comunidade de origem a
acessar os bens culturais aos quais quem está nos grandes centros urbanos têm
acesso. Para isso, é preciso tornar a cultura um direito cidadão de fato. É
necessário uma política de Estado. Até porque, isso impede que o governo A ou B
desmanche o que seus antecessores criaram. Além disso, a cultura tem que ser
transversal. Se nos quilombos há espaços como os Cras [Centro de Referência de
Assistência Social], Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência
Social], associações, igrejas e escolas públicas, eles têm que ser utilizados
como ferramentas de acesso público à cultura onde possam ser feitas
apresentações de peças teatrais, shows musicais e outros eventos que
a comunidade também quer ver.
Agência Brasil: Falamos
bastante sobre a importância da cultura, mais qual é, atualmente, a principal
reivindicação do movimento?
Selma Dealdina: Nossa
principal luta continua sendo pela titulação dos territórios quilombolas. E não
é de hoje. Há mais de 1,7 mil processos parados no Incra [Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária]. A demora na titulação dos territórios agrava o
conflito no campo. Estamos falando de mais de 6,5 mil quilombos no Brasil,
espalhados por mais de 1,6 mil municípios de 24 das 27 unidades federativas do
país. Há quilombos urbanos que sofrem com a expansão imobiliária em torno das
comunidades, que é o caso do Quilombo Sacopã, às margens da Lagoa Rodrigo de
Freitas, na zona sul do Rio de Janeiro. Sem a titulação dos territórios
quilombolas, não há como fazer muita coisa, mesmo havendo políticas públicas
importantes. Como o Estado vai nos dar sementes se não tivermos terra para
plantar? Como vamos construir novas casas para a comunidade que cresce se não
há mais terras? E aí, voltamos ao fazer cultural que, como eu disse no começo,
ocorre na base da teimosia, da resistência. Porque se você corre o risco de ser
expulso a qualquer momento do seu território, todas as manifestações
tradicionais associadas a aquele lugar, a aquele grupo de pessoas, tende a se acabar.
Fonte: Agência Brasil
Foto: Antonio
Cruz/Agência Brasil