
No dia 5 de novembro de 2015, a lama que escorreu após o
rompimento da barragem da mineradora Samarco no município de Mariana (MG)
destruiu diversas casas no distrito de Gesteira, localizada na cidade vizinha
Barra Longa (MG). Após mais de sete anos, a história de dezenas de famílias
ganhou um novo capítulo.
Um acordo judicial irá tirar do papel a reconstrução da
comunidade, a partir da transferência de recursos aos atingidos, para que
conduzam as obras de seus imóveis de maneira independente, e à prefeitura do
município, que ficará encarregada pela infraestrutura e pelas edificações de
uso público. Também foram previstos o pagamento de indenizações individuais e a
criação de um fundo destinado a projetos comunitários. Ao todo, foi anunciado o
aporte de R$ 126 milhões.
Assinam o acordo o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG),
o Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública da União (DPU), a
Comissão de Atingidos de Barra Longa, a prefeitura de Barra Longa, a Samarco e
suas acionistas Vale e BHP Billiton e a Fundação Renova, que atua no processo
reparatório da tragédia. Os termos foram pactuados no âmbito de uma ação civil
pública movida pelo MPF e a homologação se deu nesta terça-feira (30) pela
Justiça Federal.
Impacto
A tragédia ocorreu em novembro de 2015, deixando 19 mortos e
causando impacto a dezenas de cidades mineiras e capixabas na Bacia do Rio
Doce. A avalanche de rejeitos atingiu o distrito de Gesteira de forma parcial.
A lama preservou quem morava na parte mais alta do distrito, mas nas margens do
Rio Gualaxo do Norte o que permaneceu de pé se converteu em ruínas que
documentam o episódio.
Gesteira foi uma das três comunidades devastadas no
episódio, mas a única delas que ainda não tem obra em andamento. A reconstrução
de Bento Rodrigues e Paracatu, distritos de Mariana, se aproximam do final,
embora o cronograma original previsse as entregas para 2018 e 2019. O MPMG
move uma ação judicial para obrigar a Samarco a pagar uma multa pelo
atraso.
As obras de reconstrução dos dois distritos de Mariana são
administradas pela Fundação Renova, entidade que foi criada com base no acordo
para reparação dos danos firmado em março de 2016 pelo governo federal, pelos
governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, pela Samarco e por suas
acionistas Vale e BHP Billiton. Cabe a ela gerir mais de 40 programas, que são
custeados com recursos das três mineradoras, entre eles o de reconstrução e
reassentamento das comunidades.
Há pouco mais de um mês, a Fundação Renova entregou as
chaves para algumas famílias de Bento Rodrigues, que
poderão ser as primeiras a se mudarem. Alguns atingidos, no entanto, alegam que
sequer receberam os projetos arquitetônicos. Também existem queixas
relacionadas ao resultado final. Conforme mostrou a Agência Brasil em
novembro do ano passado, o novo distrito de Bento Rodrigues pouco lembra
a comunidade arrasada pela lama. Na plataforma Google
Street View ainda é possível passear virtualmente pelas
ruas existentes antes da tragédia: notam-se casinhas simples de um pavimento,
horta no quintal, galinheiro no fundo da casa, poucos muros e muito verde.
Já o distrito que está tomando forma conta com imóveis
maiores e de padrão construtivo mais elevado, cercados por muros, alguns com
churrasqueiras e piscinas, que dão ares de um condomínio urbano e se distanciam
da paisagem de uma comunidade rural. Segundo Rodrigo Vieira, coordenador da
Cáritas, entidade que presta assessoria técnica aos moradores atingidos de Mariana,
não se garantiu a preservação do modo de vida das famílias. "Era uma
comunidade rural e agora eles não terão nem água bruta para plantar suas hortas
e para criar pequenos animais. Irão viver em um loteamento urbano. Como é que o
pessoal vai se reativar economicamente?”, questionou em entrevista à Agência
Brasil.
Passados mais de sete anos, a atuação da Fundação Renova tem
sido bastante contestada não apenas no programa voltado para a reconstrução das
comunidades, como também em questões relacionadas à indenização e à recuperação
ambiental. O MPMG considera que diversas medidas não estão sendo implementadas
de forma satisfatória e chegou a pedir a extinção da
entidade por entender que ela não tem a devida autonomia
frente às três mineradoras. Atualmente estão em curso tratativas para uma repactuação
do processo reparatório, na qual todas as partes envolvidas
discutem um novo acordo que seja capaz de oferecer uma solução para mais de 85
mil processos judiciais que tramitam relacionados à tragédia.
Divergências
Há divergências em torno da reconstrução de Gesteira pelo
menos desde 2019. Os moradores da comunidade reivindicaram um processo distinto
daquele que era realizado em Bento Rodrigues e Paracatu. Eles optaram por
desenvolver seu projeto urbanístico de forma independente, com o apoio de
arquitetos e engenheiros vinculados à Associação Estadual de Defesa Ambiental e
Social (Aedas), entidade escolhida pelos próprios atingidos da cidade de Barra
Longa para prestar assessoria técnica. Na época, a Fundação Renova alegava
que o processo andava mais
lento porque a Aedas queria discutir diversas diretrizes
antes de avançar no desenho urbano.
A assessoria técnica dos atingidos contestava. Segundo a
entidade, as diretrizes assegurariam a manutenção dos modos de vida da
comunidade e direitos das famílias. Ela cobrava a garantia de intervenções no
solo caso fossem necessárias, já que os imóveis destruídos se encontravam em
área fértil próxima ao Rio Gualaxo do Norte. O direito de autoconstrução era
outra reivindicação: alguns atingidos, que também trabalhavam como pedreiros,
tinham o desejo de erguer suas próprias casas.
"A Fundação Renova sempre se utiliza disso para dizer
que o processo está mais demorado. E, na verdade, quem faz esse processo ficar
moroso é ela. No último mês, nós tivemos três agendas para discutir as
diretrizes e a Fundação Renova não veio. A gente agenda, ela confirma e
desmarca em cima da hora. E quando ela vem, o corpo de profissionais enviado
não é capaz de dar respostas e pede tempo para avaliar as diretrizes definidas
pelos atingidos", reclamou Verônica Medeiros, coordenadora operacional da
Aedas em entrevista à Agência Brasil em novembro de 2019.
O terreno de 40,41 hectares escolhido pelos atingidos para a
nova comunidade chegou a ser adquirido pela Fundação Renova em 2018. Mas as
obras não foram iniciadas no local. Com os diversos atrasos e divergências,
apenas seis famílias ainda têm interesse na reconstrução da comunidade. Outras
31 fizeram a opção de serem atendidas por uma outra modalidade de
reassentamento, na qual elas escolheram imóveis em outras localidades e a
Fundação Renova ficou encarregada de arcar com os custos da aquisição.
O acordo recém-celebrado na Justiça Federal não foi aceito
por uma das seis famílias, que tem a alternativa de apresentar suas
reivindicações através de ação judicial individual ou buscar um acordo
extrajudicial com a Fundação Renova. Os demais atingidos estão abrangidos pelos
termos pactuados.
Divisão dos recursos
Diferente do que ocorre na reconstrução de Bento Rodrigues e
Paracatu, a Fundação Renova não irá administrar as obras da comunidade de
Gesteira. A entidade se responsabilizará apenas pelo custeio. Dos R$ 126
milhões previstos no acordo, R$ 57 milhões se referem a um repasse para o
município de Barra Longa. A prefeitura ficará encarregada de realizar as obras
de urbanização e de infraestrutura e a construção de edificações públicas,
incluindo igreja, templo evangélico, galpão para reprodução de mudas, tanque
para piscicultura, área de cavalgada, pista de caminhada e ciclismo, área de
lazer infantil e campo de futebol, entre outros.
O terreno onde a nova comunidade será instalada, comprado
pela Fundação Renova em 2018 e avaliado atualmente em R$ 2,75 milhões, será
transferido ao município. Está incluso ainda no acordo um repasse para as
famílias que irão viver no distrito reconstruído, exceto para a única que não
assinou o acordo. O montante possibilitará que elas realizem as obras de suas
casas. A Fundação Renova deverá fazer o depósito judicial de todos os recursos
em até 30 dias úteis. Em caso de descumprimento, a multa é de 10% além de juros
de 1% ao mês e correção monetária pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Amplo (IPCA).
Também constam no acordo a destinação de R$ 10,8 milhões
para um fundo destinado ao financiamento de projetos de caráter social,
econômico e cultural e de recuperação da atividade agropecuária. Esses projetos
serão definidos mediante deliberação dos atingidos. Ao menos R$ 800 mil
precisarão estar voltados para ações relacionadas à assistência técnica e
extensão rural. A composição dos recursos anunciados no acordo incorpora ainda
indenizações individuais para todas as 36 famílias signatárias e valores já
dispendidos para a reparação em Gesteira, entre eles os gastos realizados com a
compra de imóveis para as famílias que optaram por seguir a vida em outras
localidades.
O MPF e o MPMG divulgaram comunicados destacando a
participação ativa da comunidade na elaboração do acordo. "As pessoas
atingidas puderam analisar cada cláusula", assegurou o MPMG. A Aedas
também se manifestou por meio de uma nota que inclui uma avaliação da coordenadora
Verônica Medeiros. “Esse acordo celebrado hoje é um testemunho da luta e
resistência das pessoas atingidas que apesar de todos os desafios não
desistiram e agora dão mais um passo no sentido da concretização do
reassentamento”, disse ela.
Procurada pela Agência Brasil, a Fundação Renova
destacou a previsão de pagamento de indenizações individuais às famílias
signatárias e de um valor referente ao fundo para projetos comunitários, além
dos montantes referentes à reconstrução da comunidade e de outros recursos já
repassados aos atingidos de Gesteira. Em nota conjunta, a Samarco, a Vale e a
BHP Billiton afirmaram que a assinatura do acordo reafirma o compromisso com a
reparação integral dos danos causados. "Até março de 2023, já foram
indenizadas mais de 413,3 mil pessoas, tendo sido destinados mais de R$ 29,19
bilhões para as ações executadas pela Fundação Renova", dizem as
mineradoras.
Fonte: Agência Brasil
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil